03 Outubro 2019
"A vida da Igreja não pode – e não deve – regular-se exclusivamente pelo Direito Canônico. Historicamente, nunca foi assim. E seria uma concessão à mentalidade tecnocrata começar, hoje, a assim fazer", afirma Massimo Faggioli, em artigo publicado por La Croix International, 02-10-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Segundo ele, "a sinodalidade marca uma mudança paradigmática. Ela requer encontrar formas de superar os limites de um marco jurídico que está preso no velho paradigma, preservando o tempo todo a unidade e a catolicidade da Igreja".
Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos.
Bispos católicos do mundo todo vêm respondendo de várias maneiras à crise que a Igreja enfrenta atualmente. Alguns têm buscado mostrar que os bispos nos EUA e na Alemanha estão respondendo de uma forma parecida. Porém, temos aqui uma falsa equivalência.
De um lado do Atlântico, os bispos americanos, cujos antecessores acolheram com alegria as reformas do Concílio Vaticano II (1962-1965), recusam-se até mesmo a imaginar como poderiam implementar a sinodalidade, hoje, nos níveis local e nacional. Divisões internas têm, de fato, paralisado a conferência episcopal deste país.
Na Europa, os bispos alemães têm feito exatamente o contrário. Eles têm feito avanços, como mostra o sínodo nacional de 1971-1975, para garantir que a colegialidade e a sinodalidade não fossem somente palavras bonitas.
O esforço tendencioso de igualar duas maneiras bem diferentes com as quais as igrejas têm tentado lidar com a presente crise eclesial revela um problema maior.
É um mal-entendido fundamental, difundido principalmente por aqueles que se autodescrevem como “católicos ortodoxos”, geralmente com formação jurídica, em torno do sistema de governança da Igreja e dos limites daquilo que pode – e do que não pode – mudar.
Estes mesmos católicos continuam a interpretar, dentro dos limites estreitos do Direito Canônico, os esforços do Papa Francisco em inaugurar um modelo sinodal na Igreja.
Com certeza, o direito eclesiástico é um dos pontos de referência para a compreensão de como implementar a sinodalidade. Mas não é o único. E certamente não é o mais importante.
Dois exemplos tirados da história sublinham como elementos não monárquicos tornaram-se parte da vida da Igreja com a provação da instituição e do papado.
O primeiro exemplo é o cardinalato.
Durante séculos, os cardeais encarnaram o poder da aristocracia que cercava e sustentava o poder primordial do papa.
A maioria deles eram italianos, geralmente nomeados sob recomendação dos imperadores, reis e governos nacionais (cardinali della corona). Institucionalmente, encontravam-se na área intermediária entre o tribunal romano da Renascença e a Cúria Romana.
Lentamente, após a queda dos Estados papais em 1870, e mais rapidamente após o final da Segunda Guerra Mundial, os cardeais começaram a encarnar uma “colegialidade cardinalícia” complementar à colegialidade episcopal. Isto se acelerou no atual papado.
A internacionalização do Colégio Cardinalício trouxe uma alteração significativa para esta instituição exclusivamente composta de homens que é uma característica singular da Igreja Romana. Paulo VI definiu o cardinalato como “uma síntese da urbs (a cidade de Roma) e da orbis (o globo)”.
Os efeitos legais e institucionais desta mudança (no papel dos cardeais na Igreja global e a maneira como modelam a primazia papal com a eleição do Bispo de Roma) seguiram uma evolução da instituição que não foi antecedida por uma mudança no direito.
Por exemplo, a tendência a eliminar cardeais leigos (que existiam, embora em pequeno número, até o século XIX) teve a ver com o desaparecimento dos Estados papais.
Os papas decretaram leis que clericalizaram o cardinalado somente mais tarde, no século XX. O Direito Canônico (especialmente o primeiro Código de 1917) seguiu uma evolução institucional e eclesiológica que surgiu, em grande parte, de eventos externos, principalmente a derrocada dos Estados papais.
Um segundo exemplo de como elementos não monárquicos se tornaram parte da vida e governança da Igreja é o surgimento das conferências episcopais nacionais. As primeiras foram organizadas no século XIX.
No começo do século XX algumas delas haviam assumido um papel importante como voz dos episcopados locais diante do governo nacional. Por vezes, algumas delas também desafiavam o Vaticano.
Isso não passou despercebido na Cúria Romana. Entre 1924 e 1926, a precursora da Congregação para os Bispos (a Sagrada Congregação Consistorial) debateu acirradamente o papel das conferências episcopais.
O Cardeal Gaetano de Lai, primeiro prefeito da congregação na época, considerava-as como sendo “totalmente perigosas”.
Ele as acusava de parlamentarismo e de violação do Direito Canônico, alertando que tais conferências usurpavam o papel dos conselhos plenários. Mais que isso, de Lai dizia que as conferências eram demasiadamente “políticas” e não respeitavam suficientemente as prerrogativas do Vaticano.
Confrontado com a pressão da Congregação Consistorial, Pio XI (não exatamente um progressista) pôs-se a regular as conferências dos bispos, mas recusou-se a proibi-las ou suspendê-las.
O seu sucessor imediato, Pio XII, deu um passo à frente em 1955 ao aprovar o recém-criado conselho do episcopado latino-americano (conhecido como CELAM). Então, no Vaticano II, enquanto as lideranças eclesiásticas debatiam extensivamente a colegialidade episcopal, tomou-se a decisão de se criar as conferências episcopais nacionais.
No período pós-conciliar, estas tornaram-se fundamentais na Igreja Católica. E o Papa Francisco (o único papa a ter servido como presidente de uma conferência episcopal nacional) está dando a elas ainda mais destaque. (Para isso, vejam-se as notas de rodapé em suas encíclicas e exortações.)
Estes dois exemplos – a clericalização do cardinalato e o surgimento das conferências episcopais – contam a história sobre a evolução eclesiológica e institucional da Igreja.
Entre os séculos XIX e XX, a Igreja Católica Apostólica de Roma cercou o papado monárquico com novos mecanismos de poder aristocrata com o cardinalato e o episcopado – também conhecido como colegialidade.
Este processo continua a se desenvolver e, hoje, a Igreja Católica vem dando passos no sentido da sinodalidade.
E como a colegialidade antes, não existe uma estrutura jurídica suficiente para conter o impulso em direção a uma Igreja sinodal – impulso que o Papa Francisco aprovou e endossou inequivocamente, em particular no discurso de outubro de 2015 que marcava o 50º aniversário do Sínodo dos Bispos.
O direito sempre consolida um movimento somente décadas ou séculos mais tarde. No caso da sinodalidade, o debate começou na década de 1990. Mas Francisco é o primeiro papa a plenamente abraçá-lo e desenvolvê-lo.
Sem dúvida, a concepção de sinodalidade eclesial do papa de 82 anos tem seus limites e ambivalências. Um deles é o seu foco intenso no Sínodo dos Bispos, que tecnicamente é uma ferramenta da primazia papal e apenas de um modo limitado o é da colegialidade episcopal, muito menos de sinodalidade eclesial.
Alguns já sugeriram que Francisco deveria utilizar melhor o Colégio Cardinalício e consultar-se com ele mais vezes.
Mas, independentemente disso, está claro que o papa tem dado à Igreja Católica um espaço e tempo para experimentar e começar a viver com a sinodalidade, da mesma forma que Pio XI fez com as conferências dos bispos e que João XXIII fez com a colegialidade episcopal.
É evidente que o direito tem uma função neste processo, mas uma função limitada.
O Vaticano II afirmou os princípios fundamentais para a compreensão da Igreja, mas não lhe deu uma constituição jurídica formal. No período pós-conciliar imediato, na década de 1970, o projeto de um “direito constitucional” (Lex Ecclesiae Fundamentalis) para a Igreja Católica foi abandonado.
Nem o Código de Direito Canônico (1983) nem o Catecismo (1992), ambos documentos pós-Vaticano II do magistério papal, é a constituição da Igreja Católica.
Os católicos conservadores, especialmente, precisam entender que codificação das leis da Igreja (em um livro) e os seus ensinamentos catequéticos (na forma de um catecismo universal) são invenções recentes na história da Igreja.
Se existe uma constituição para a Igreja, ela é o Evangelho. E a Suprema Corte não é a Cúria Romana, mas a tradição viva da Igreja, que, nos últimos dois séculos, nos brindou com exemplos interessantes de como mudar os sistemas da governança eclesial.
Muitas vezes ouvimos católicos conservadores falar que “a Igreja não é uma democracia constitucional”.
Eles enfatizam a rejeição do parlamentarismo e do procedimentalismo, ao mesmo tempo que tendem a esquecer que os membros da Igreja possuem direitos e não estão à mercê de uma hierarquia absoluta.
Na verdade, ela é uma democracia que corresponde melhor do que qualquer outro sistema ao que o Vaticano II chama de “dignidade inerente da pessoa humana”.
Aqueles que rejeitam qualquer paralelo entre a ordem da Igreja e a democracia constitucional normalmente focam-se quase exclusivamente no conceito de democracia, enquanto negligenciam o elemento constitucional.
De fato, a Igreja Católica não possui uma constituição escrita. Portanto, o axioma “a Igreja não é uma democracia constitucional” corta nos dois sentidos.
A vida da Igreja não pode – e não deve – regular-se exclusivamente pelo Direito Canônico. Historicamente, nunca foi assim. E seria uma concessão à mentalidade tecnocrata começar, hoje, a assim fazer.
A sinodalidade marca uma mudança paradigmática. Ela requer encontrar formas de superar os limites de um marco jurídico que está preso no velho paradigma, preservando o tempo todo a unidade e a catolicidade da Igreja.
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A emergência da sinodalidade e a inadequação do Direito Canônico. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU